Como se tornar o pior aluno da escola: análise psicológica com foco na violência sexual
Assunto: autor de violência, estupro, prevenção, proteção, psicologia, sexualidade, violência, violência sexual, vítima
Data: 12/04/2022

Depois da polêmica que envolveu o filme “Como se tornar o pior aluno da escola’’, diversas pessoas pediram minha opinião profissional. Então, realizei uma breve análise, restrita ao campo psicológico, com foco na violência sexual, a partir de sete cenas.

Cena 1:

Em troca da manutenção de um segredo, Cristiano, personagem de Fábio Porchat, sugere a dois adolescentes que batam “uma punheta para o tio’’. Os meninos se recusam e ele os questiona: “Preconceito nessa idade? Gente, é super normal. Vocês têm que abrir a cabeça de vocês. Uma juventude retrógrada.’’

Análise da cena 1

Assim como no filme, pessoas que praticam violência sexual podem utilizar argumentos para convencer as vítimas que tais atos são comuns e normais. Ter clareza que nem sempre existem ameaças explícitas às vítimas, ao contrário do que pensamos, é importante para ensinarmos às crianças esse jogo sutil e perverso que as captura a partir de uma racionalidade distorcida.

Cena 2:

Cristiano abre o zíper, pega a mão de um dos meninos e pratica violência sexual. Em seguida, aparece a cena de um desenho com gritos, expressão de vômito e braço cortado ao meio. O menino retira a mão, com nojo, faz um comentário sobre as veias do pênis, defende-se com spray de pimenta e sai correndo. Cristiano chama isso de homofobia e alega que os adolescentes podem ser presos por isso.

Análise da cena 2:

Essa cena foi feita com dois adolescentes de carne e osso. As consequências emocionais e psicológicas para esses meninos são imprevisíveis, mas podem ser nefastas e devastadoras. No filme, o autor da violência culpabiliza as vítimas e justifica seu comportamento sexualmente criminoso. Estes são mecanismos psicológicos comumente utilizados para construírem uma narrativa para si próprios, para as vítimas e para a sociedade, já documentados em minhas pesquisas com homens presos e condenados por tais crimes (ESBER, 2009, 2016).

Cena 3:

Os dois adolescentes estão na fila do lanche, começam a falar sobre a violência sexual ocorrida e um deles pede silêncio ao outro.

Análise da cena 3:

O silêncio é comum em vítimas de violência sexual pois, no campo individual, ela produz sentimentos de vergonha, culpa, medo, nojo, confusão e raiva. Tais reações são modeladas pelo modo como a sociedade reage a isso, pois as biografias individuais estão submetidas às biografias sociais (BERGER e BERGER, 1978). Na sociedade brasileira, o silêncio acompanhou as vítimas por séculos e séculos, a partir de uma organização machista e patriarcal (DEL PRIORE, 2011). A violência sexual contra crianças e adolescentes não é nova, mas seu enfrentamento é. Ele se dá por meio da quebra do silêncio, da realização de denúncias e da responsabilização criminal de quem a pratica. Essas são conquistas sociais provenientes das transformações consolidadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, aprovado em 1990. Nesse sentido, a cena deseduca, pois retoma um tipo de reação que não mais queremos estimular. Não podemos retroceder um milímetro sequer à dignidade já conquistada por todo esse movimento social transformador de abrir a boca para falar e jamais se silenciar.

 

Cenas 4 e 5:

Uma mulher mostra os seios para os dois adolescentes // O personagem de Danilo Gentili e duas mulheres estão nus em uma banheira, conversando com os dois adolescentes, que presenciam a cena.

 

Análise das cenas 4 e 5:

Apesar das nossas dificuldades em interpretar dessa maneira, as cenas retratam violências sexuais praticadas por mulheres contra meninos. Em nossa sociedade, raramente as reconhecemos ou nomeamos de tal forma, pois são minimizadas em seu potencial nocivo, invisibilizadas, não identificadas e não denunciadas. Entretanto, em minhas pesquisas com autores de violência, constatei que vários apresentaram consequências psicológicas maléficas por terem sido vítimas de mulheres em suas infâncias (ESBER, 2009; 2016). O filme naturaliza tais interações como boas e possíveis, mas não são.

 

Cena 6:

Na formatura da escola, Cristiano dá um tapa na bunda de um aluno que, segundo o narrador do filme, “gosta de lamber o saco dos outros. Ele é feliz assim, embora seja um babaca. Ele vai se dar bem com o novo diretor da escola”.

Análise da cena 6:

Costuma-se argumentar que os adolescentes já possuem uma sexualidade aflorada, que sentem prazer sexual ou já que sabem o que fazem. O problema desse raciocínio é que ele não considera que, quando existe um adulto nessa interação, ela se torna pseudo igualitária, com profundos desníveis sexuais, desenvolvimentais, emocionais, psicológicos, financeiros, sociais e humanos. Isso a torna nociva e reprovável, nomeada como uma violência na qual esse adolescente é uma vítima.

 

Cena 7:

Cristiano, no papel de diretor da escola, diz em seu discurso para os pais e alunos: \\\\\\\"Podem ficar tranquilos que seus filhos vão estar seguros e salvos ao meu lado”.

Análise da cena 7:

Apesar de socialmente nomeados como monstros, autores de violência sexual são geralmente cidadãos comuns, acima de qualquer suspeita, que se utilizam de palavras doces, bem articuladas e suaves, assim como o personagem do filme. São pais, padrastos, professores, vizinhos, diretores, mães, babás e professoras. Torna-se urgente desmistificar esse personagem que se tornou “o monstro contemporâneo” (LOWENKRON, 2012) de forma que tenhamos um retrato mais real e menos fantasioso da realidade.

 

Finalizando:

A batalha jurídica que resultou na reclassificação indicativa do filme de 14 para 18 anos foi uma vitória para toda a sociedade. Isso não significa que esse é um tema proibido para os adolescentes. Muito pelo contrário, é necessário e recomendável falar sobre esse assunto, mas dentro de um contexto de informação, prevenção e proteção, ou seja, de educação sexual, que é tão polêmica, mas também tão necessária. No filme, o cenário de humor, a presença de adolescentes nas cenas de violência sexual, a naturalização dessas relações, a desinformação ao tratar de assuntos tão graves e a ausência de qualquer desfecho que protagonizasse uma resposta de resistência das vítimas é que se tornou reprovável. Não se faz humor com o sofrimento, a culpa, a vergonha e a raiva. O humor não machuca, não ofende e não humilha. A violência sexual SIM. Jamais misturemos os dois, porque não tem graça nenhuma.

Dra. Karen Michel Esber

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